3 de fev. de 2009

Canção da Madrugada

Poema de David Mourão Ferreira para Cecília Meireles:
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Canção de Madrugada


à Cecília Meireles

Ecorrem de noite pelos prédios,

dissimuladas na umidade

— dissimulando elas o tédio

das longas noites da cidade —

deusas solícitas que vão,

com sua etérea assinatura,

quase propor a redenção,

— de rua em rua, dar a mão

a quem se arrasta e procura.



Pobre de quem vem perguntando

à pedra esquiva das esquinas

a voz e a face dessa amante

de que não restam senão cinzas!

Pobre do outro a quem o gelo

daquele encontro tão malsão

nem conseguiu arrefece-lo!

— Pobres de tantos, sem o selo

de garantia da ilusão!



Ó vidas presas por um fio,

junto ao abismo dos fracassos,

quem vos evita o fim sombrio

já desenhado em vossos passos?

— Com grandes túnicas violáceas,

as deusas erguem claras brisas:

nas avenidas e nas praças,

tremem as folhas das acácias,

vibram os peitos infelizes.



Até o frígido luar,

que de livor tingia as ruas,

se vai sumindo, devagar,

deixando as almas menos nuas...

Uma promessa de folhagem,

de vento e sol, as veste agora:

e, penetradas pela aragem,

as almas tímidas reagem

à madrugada que as enflora!



Súbito, a um gesto das deidades,

quebra-se o fúnebre luzeiro

das outras luas enforcadas

nos braços curvos dos candeeiros.

Já no crepúsculo se esfuma

a doentia sugestão,

— e as deusas tecem, com a bruma,

a nova luz que se avoluma

e é uma promessa ou uma canção.



Do sofrimento a noite cessa

na indecisa madrugada:

que ninguém peça a uma promessa

mais que a promessa que foi dada!

A quem sofreu, basta que a vida

levante um sol de entre as ruínas:

uma promessa doutra vida...

— Quanto aprendi!, nesta comprida

noite que tu, Canção, terminas.


David Mourão Ferreira